FMR 21 TRIBUNA

A reconstrução do movimento comunista hoje na perspectiva do materialismo histórico

Deixemos de meias-palavras: apenas a superação do capitalismo, mediante uma revolução socialista, com a conquista do poder político liderada pela classe operária em aliança com a maioria das classes trabalhadoras, pode evitar a catástrofe e abrir caminho para o futuro. Socialismo ou barbárie, assim está colocada a questão, com uma urgência muito maior do que na época em foi colocada, quando do desencadeamento da 1ª guerra interimperialista nos anos 1914-1918 e três décadas mais tarde, na 2ª que conduziu à derrota do nazi-fascismo.

Mas, como ouvimos nas mesas do atual Ciclo de debates, os desafios são imensos, porque, em primeiro lugar, o processo destrutivo das forças produtivas em curso não é percebido como tal e sim como “destruição criativa” incessante do capital que o economista Schumpeter, parafraseando Marx e Engels, tornou a ideologia oficial da burguesia e a ideologia dominante na sociedade. O problema é que tal ideologia tem uma base material, ou seja, amarra consigo, em suas correntes, as classes trabalhadoras em defesa dos seus empregos, níveis de remuneração e benefícios sociais.

Em segundo, porque o avanço transnacional do capital encontra, por todo o lado, o movimento dos trabalhadores numa posição defensiva frente ao capital, enquanto as correntes políticas de extrema-direita, agrupando suas forças dentro das fronteiras nacionais, estão em ascensão. É o combustível ideológico para manipular as massas trabalhadoras e atirá-las umas contra as outras, nos próximos conflitos que delineiam o espectro de nova guerra interimperialista, liderada pelo governo dos EUA contra a China.

Em terceiro lugar, porque a classe operária foi submetida, há décadas, a um tipo de reformismo cada vez mais rebaixado, quer dizer, despido da possibilidade de conquistas materiais garantidas por direitos legalmente estabelecidos, em troca de benefícios, para aqueles empregados, sob a forma de participação nos lucros nas empresas e, para os desempregados de longa duração, o substituto do auxílio desemprego por mecanismos de transferência de renda intitulados genericamente de “renda mínima”. Tais foram as consequências do chamado neoliberalismo. Esse rebaixamento foi a expressão da crise da social-democracia que sustentou o Estado de Bem-estar Social nas décadas de 1950 a 1970 e pode ser denominado de social-liberalismo: foi praticado em larga escala no Brasil durante doze anos de governos petistas.

Ressaltamos, na segunda mesa deste Ciclo de debates, a interpretação destes fenômenos por FMR na publicação de Anti-Dimitrov, em 1985. No Prefácio desta obra, encontramos a síntese do que ele denominou de frentismo:

Hoje quase esquecido esse relatório de Dimitrov ao 7º congresso da Internacional Comunista, haverá quem lhe atribua um interesse meramente histórico. A verdade, contudo, é que, neste meio século, a ideia da unidade democrática e anti-imperialista se incorporou como património, não só dos partidos comunistas, mas de uma vasta corrente progressista internacional. Pode dizer-se que todos os que se situam para a esquerda da social-democracia são hoje dimitrovianos sem o saber — os sandinistas da Nicarágua como os guerrilheiros peruanos, os pacifistas alemães e os deslavados ‘comunistas’ portugueses.

Certamente incluiríamos hoje, no Brasil, o Partido dos Trabalhadores, inclusive daquelas correntes que, em seu meio, ainda falam em socialismo.

O laço que une estas forças tão diversas é a noção de um campo popular, cujos interesses comuns face ao imperialismo envolveriam o proletariado e a pequena burguesia numa mesma estratégia fundamental, aproximariam, fundiriam as suas trajectórias.

O poder de convicção do dimitrovismo, acrescenta, deve-se ao fato de ir

ao encontro do bom-senso político elementar das massas nesta época de horrores do imperialismo. Não necessita de demonstração. Ninguém no campo popular sente qualquer dificuldade em admitir espontaneamente que ‘a unidade da esquerda é a melhor arma contra a direita”.

A implicação é clara: “o significado da unidade de todo o povo em torno de objetivos comuns”, a se constituir no “máximo divisor comum das forças populares” requer, ao  alinhar pelo nível mais moderado, comum a todos, “pôr de lado os objectivos revolucionários da classe operária, que, obviamente, não são comuns”.

Eis pois que precisamos fazer o inventário histórico da linha política que conduziu às derrotas ao longo do século XX e acautelar-nos de sua repetição.

Aqui há um encontro notável de método entre Francisco Martins Rodrigues e o que, um tempo antes, escrevera Ernesto Martins no texto “Proletariado brasileiro e revolução mundial” que disponibilizamos no Caderno de Debates nº. 6.

“Ouço perguntar os companheiros:

Mas por que levantar agora esse peso de um passado, que para nós é história? É tão importante isso frente à situação e aos problemas que estamos enfrentando?

É importante sim. E é decisivo para nós compreender e digerir este passado, para poder superar as suas conseqüências. Trata-se de certo modo, do nosso passado, pois somos parte do movimento comunista internacional. Sentimos as suas conseqüências no cenário nacional e internacional, que hoje não podem mais ser separados.”

Trata-se, portanto, de resgatar ou, como foi dito neste Ciclo de Debates, desenterrar o marxismo dos escombros deste processo. É o pressuposto para o ressurgimento de uma corrente de ideias verdadeiramente comunistas ou, como prefiro denomina-la, revolucionária, por conta da deformação do comunismo nas mãos do revisionismo estalinista que impregnou a Internacional Comunista principalmente a partir do VII Congresso e que, após a sua dissolução, deixou marca indelével nos partidos comunistas nacionais.

Desenterrar o marxismo pode parecer tarefa simples, como a de reler os “clássicos” e atualizá-los. Esta tem sido, aliás, a tradição da esquerda, mesmo quando se pretende revolucionária. Porém habitualmente não se faz a leitura a partir da luta de classes em que os autores estavam inseridos, como recomendou David Riazanov em suas conferências sobre Marx e Engels (1923), de tal modo que as disputas políticas em termos de estratégia e tática são descontextualizadas; pior, lê-se do ponto de vista exclusivo do “vencedor” da disputa. Assim, por exemplo, se quisermos compreender com profundidade o revisionismo e o centrismo, teremos de ler não apenas a obra crítica de Rosa Luxemburgo (“Reforma social ou revolução?”), mas a quem esta obra se dirige, ou seja, as publicações de Bernstein (“Problemas do socialismo” e “As premissas do socialismo e as tarefas da social-democracia”). E também a crítica de Kautsky intitulada “Bernstein e o programa social-democrata: uma anticrítica. A doutrina socialista”, escrita no mesmo período da obra de Rosa Luxemburgo.

O nosso desafio consiste, de fato, em superar a herança do estalinismo, tal como assinalado por Francisco Martins Rodrigues na crítica à linha frentista generalizada no movimento comunista internacional. Há, contudo, de se escavar mais fundo.

Em Caminho e caráter da revolução brasileira, acima citado, Ernesto Martins (Erico Sachs) observa que a fraqueza ideológica e objetiva dos partidos comunistas recém fundados e aderidos à Internacional Comunista em 1919 e formalizados em 1921 criou uma dependência em relação ao Partido Comunista da União Soviética, o “partido dirigente” de uma revolução vitoriosa. Então faz uma análise importante: a de que a subordinação politica dos partidos comunistas acentuou-se após a morte de Lenin, em 1924, apesar dele mesmo ter lançado a “advertência que era ao mesmo tempo uma autocrítica”.

Eis o que ele disse na abertura do IV Congresso, em 13 de novembro de 1922:

“Em 1921, no III Congresso, aprovámos uma resolução sobre a estrutura orgânica dos partidos comunistas e sobre os métodos e o conteúdo do seu trabalho. A resolução é excelente, mas é quase inteiramente russa, isto é, tudo é tomado das condições russas. Este é o seu lado bom, mas também o mau. Mau, porque estou convencido de que quase nenhum estrangeiro poderá lê-la; eu reli esta resolução antes de dizer isto.”

Ademais de ser longa, assinala que, mesmo que a lessem a resolução, esta era demasiado russa, estava “inteiramente impregnada de espírito russo”. Mais importante: “se por excepção algum estrangeiro a conseguir compreender, não poderá cumpri-la”.

Por que? Porque tinham de assimilar “parte da experiência russa” – ressalvando “não sei como o farão” – aquilo que, naquela correspondia à situação internacional, mas fazer esse aprendizado na luta de classes. Menciona o aprendizado no enfrentamento com os fascistas na Itália e aqui encontramos ecos de um debate que vem de longe, levantado por Rosa Luxemburgo em “Questões de organização da social-democracia russa” (1903/1904).

A insistência de Lenin: “cometemos um grande erro com esta resolução, isto é, que nós próprios cortámos o caminho para o êxito futuro” foi cabalmente ignorada no V Pleno do Comitê executivo da Internacional Comunista, realizado em Moscou de 25 de março a 9 de abril de 1925. No Pleno, Zinoviev – que segundo Carr, tinha posto sobre os ombros o manto de Lenin, morto em 21 de janeiro de 1924 – apresentou as teses sobre a bolchevização e formulou marxismo-leninismo como a ideologia do movimento comunista internacional. A Internacional aprovou a bolchevização dos partidos comunistas, transformados em “seções” da Internacional.

De acordo com Edward Carr, as teses sobre a bolchevização e a definição do marxismo-leninismo acarretaram o afastamento de lideranças esquerdistas e isso incluía os “luxemburguistas” e, portanto, boa parte do Partido Comunista Alemão, substituídos por moderados.

Então, nessa história ainda a ser resgatada, precisamos reaprender a utilizar o método do materialismo histórico, procurando situar a tarefa da mobilização independente da classe operária como um processo em que a teoria revolucionária precisa ser desenvolvida para identificar as condições de luta. Mas esta, por sua vez, depende da vinculação dos revolucionários com as lutas, com o movimento vivo da classe operária, na qual também eles precisam aprender – e aqui está o sentido mais apropriado do termo tática – como sempre fizeram todos os marxistas militantes, uma exigência por sua vez atualizada por Göran Therborn em 1973, à luz das grandes mobilizações operárias do maio francês de 1968 e do outono quente italiano de 1969.

Eduardo Stotz
Centro de Estudos Victor Meyer
8 de outubro de 2021

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“Frente Ampla”: uma mistificação

Faz algum tempo que se usa “Frente Ampla” como sinônimo de “Frente Popular”. 

Poderia se argumentar que é só uma tentativa de traduzir melhor o conceito para nossa linguagem atual, já que “Frente Popular”, termo antigo, acaba sendo confuso. A ideia de amplitude já daria conta do que queremos dizer. Percebo que acaba acontecendo, na verdade, uma mistificação do debate sobre o frentismo.

Essa mistificação não é necessariamente de propósito. Ela reflete, antes, um dado objetivo da realidade: hoje em dia o frentismo hegemônico é realmente o da Frente Ampla, aquela frente “ampla mesmo, ampla pra caralho”, com partidos de direita e centro. Hoje em dia a social-democracia perdeu completamente a vergonha e não propõe mais só um “frentismo de esquerda”, ela propõe até mesmo se aliar com o Movimento Brasil Livre “contra o bolsonarismo”. Sim, hoje em dia a social-democracia está à direita de Dimitrov. É portanto compreensível que se foque tanto nisso.

Mas ao ofuscar outros aspectos da questão, não corremos o risco de propor, no lugar de uma Frente Ampla, uma Frente Popular?

Existe um imediatismo que trata essas discussões como dispersão de foco. Mas os comunistas também devem prestar atenção naquele que, apesar de não parecer ser o “grande problema” do momento, pode vir a ser no futuro. Ainda mais quando esse problema aparentemente secundário, pela falta de atenção crítica dada a ele, vai aparecer depois como a grande “solução” pro “problema principal”!

Sendo assim, devemos definir e discutir bem os conceitos. Se “Frente Ampla” significa uma aliança com os partidos de direita, de centro, etc., a Frente Popular não necessariamente envolve isso. Qual é o problema da Frente Popular, então?

O que define uma Frente Popular é a dissolução dos interesses operários e pequeno-burgueses dentro da categoria do “popular”. Para ser Frente Popular, contrariamente ao que se acredita, não é nem mesmo necessário incluir a tal da “burguesia nacional” (pelo menos não no sentido mais comum; mas temos que lembrar que os partidos social-democratas são “partidos burgueses para operários”), basta ser essa fusão operário-pequeno-burguesa que caracteriza o “popular”. Pode até mesmo ser declarada como uma frente “pelo socialismo”. Continua sendo Frente Popular, e a crítica leninista ainda se impõe necessária, pois precisamos também desmontar a noção de “caminho popular” ao socialismo. 

Não basta se declarar “pelo socialismo”. Não é porque determinada proposta unitária declara que é a “unidade das forças populares pelo socialismo” que se esteja efetivamente percorrendo esse caminho. O caminho ao socialismo é construído pela independência e demarcação de classe do proletariado que, quando avança, leva os setores intermediários e necessariamente vacilantes da pequeno-burguesia, os que vierem, ATRÁS de si. A diluição dos diferentes interesses no “popular” não marcha esse caminho. Subordina o proletariado às flutuações intermediárias “populares” da pequeno-burguesia, de vários matizes.

Nos debates recentes sobre isso é comum ridicularizar as organizações que acreditam que Lula e o PT vão apostar numa “Frente de Esquerda”, só de esquerda. Apontamos o quão iludidos eles são, pois é óbvio que Lula já está trabalhando por uma Frente Ampla, com o centro e a direita. Mas por acaso essa Frente de Esquerda seria boa? Uma frente PSOL-PCB-UP-PT seria boa? Pra quê? Seria um método efetivo de combate ao frente-amplismo de direita? Serviria pro avanço da consciência, ou serviria pra confundir? 

E eliminando da equação o PT? Pegando de exemplo as “oposições de esquerda” em torno do PSOL, representadas pela campanha da Luciana Genro em 2014, ou Guilherme Boulos em 2018. Serviram pra algum avanço de consciência? Ou serviram pra confundir, semear ilusões de que ocupar o cargo executivo no Estado Burguês serve pra “acumular forças” pro “socialismo” (“igualdade de oportunidades”, na definição do Boulos)?  

É evidente que tudo isso serviu pra confundir, e é esse o problema da Frente Popular. Amarrar o proletariado ao “popular” é neutralizar sua oposição à burguesia. Para isso, não é estritamente necessário que a frente seja abertamente com partidos de direita. Assim inclusive se garante, caso crescesse uma radicalização da esquerda para além do frente-amplismo de direita, que ela fosse neutralizada pelo frentismo “de esquerda”. Nesse frentismo, a fraseologia “popular”, “socialista” é essencial.

É por isso que temos que falar tanto dos problemas atuais mais em evidência (Frente Ampla) quanto das “soluções” que vão surgindo de mansinho, como quem não quer nada (Frente Popular em suas várias formas)… Porque quando discutimos essas “soluções”, estamos exatamente discutindo de que forma podemos nos livrar do problema, e as soluções falsas que podem surgir pra que o capitalismo se livre das crises políticas, reproduzindo o problema de outra forma (o problema sendo aqui a ausência de uma classe trabalhadora presente e bem demarcada no cenário político, problema presente tanto em Frentes Amplas quanto Populares). Não é, portanto, discussão secundária, embora a aparência seja assim, pra visão imediatista.

Uma das mistificações mais destrutivas nesse debate é a do “direcionamento da burguesia”. O debate geralmente corre tendo como referência de “Frente Ampla/Popular” o PCB nos anos 40, 50, que defendia o frentismo mais menchevique possível, defendendo abertamente a necessidade de “desenvolver o capitalismo brasileiro” sob direção da “burguesia nacional”, como condição para poder passar às tarefas socialistas. 

Junto com a mistura de “Frente Ampla” e “Frente Popular”, tratadas como sinônimos, essa referência máxima do debate faz parecer que a única coisa que se precisa fazer para evitar o frentismo reformista é combater esse exemplo máximo de menchevismo, evitando o “direcionamento da burguesia”. Basta buscar um esforço unitário amplo, mas “sob direção do campo revolucionário”.

O Francisco Martins Rodrigues discute no Anti-Dimitrov como uma das formas da Frente Popular é exatamente a proposta ao proletariado de que ele seja “força de choque” do projeto popular: 

“O povo revolucionário, operário-pequeno-burguês, unido na luta pela democracia e pela salvação da nação. É esta a argamassa ideológica com que Dimitrov construiu a sua política de frente popular antifascista. Argamassa estranha ao princípio marxista da luta de classe proletariado-burguesia.

– Mas como? – dirão aqueles que se agarram à aparência das palavras para fugir ao encadeamento dos raciocínios. – Não disse Dimitrov com toda a clareza que ‘só a atividade revolucionária da classe operária ajudará a utilizar os conflitos que surgem inevitavelmente no campo da burguesia para minar a ditadura fascista e a derrubar’? Não insistiu ele incansavelmente na necessidade de agrupar o proletariado num ‘exército combativo único lutando contra a ofensiva do Capital e do fascismo’?

Sem dúvida. Mas aquilo que deu com uma mão, tirou com a outra. Uma atividade realmente revolucionária do proletariado contra o fascismo tinha como único suporte a crítica às outras classes antifascistas, a demarcação face a elas e a independência política – justamente aquilo que Dimitrov lhe retirou. O que Dimitrov chamava de ‘atividade revolucionária da classe operária’, e desde então passou a ser entendido pelos partidos comunistas como tal, é a ocupação das primeiras linhas da luta comum antifascista. É o papel de servente e força de choque do movimento geral (isto é, burguês) antifascista.

‘Cabe ao proletariado desempenhar o principal papel na luta do povo’ – esta fórmula ‘avançada’ que, desde há meio século, centristas e revisionistas repetem à boca cheia como prova de seu leninismo, é talvez a sua maior falsificação do leninismo, na medida em que, sob uma aparência radical, ilude a questão da hegemonia. Hegemonia do proletariado, a palavra incômoda que Dimitrov se ‘esqueceu’ de usar, uma só vez que fosse, no seu relatório.

Lenin não se cansara de denunciar como os mencheviques, sob frases sonoras acerca da ‘ação revolucionária do proletariado’, negavam a este o papel de condutor do processo revolucionário e lhe reservavam um papel vistoso mas subalterno de motor a serviço da burguesia liberal, uma vez que o punham a lutar ‘na vanguarda’ das reivindicações políticas dessa burguesia.”

Fica claro então como o frentismo popular pode se esconder atrás das falas sobre o “protagonismo” do proletariado na “unidade das forças populares”. Esse “papel vistoso”, “na vanguarda”, reservado ao proletariado, pode muito bem ser isso mesmo, mas reservado a um processo que não é seu: o proletariado como força de choque, como motor da luta “popular” reformista-democrática “radicalizada”.

Por isso, devemos analisar criticamente propostas de “unidade de ação” com a social-democracia, ao invés de nos tranquilizar, pensando que tudo bem, já que sendo só “unidade de ação”, “não é Frente Ampla”. Unidade de ação pra quê? Em torno de quais demandas? Há unidades de ação, demandas e palavras de ordem que diluem e confundem interesses de classe diferentes, semeiam ilusões.

Sob o mesmo princípio, a “unidade de ação das forças socialistas” não é uma fórmula óbvia. Que “forças socialistas” são essas? Qual a sua definição de “socialismo”? Inúmeras “forças socialistas” defendem uma “unidade popular”, “no caminho do socialismo”.

Mesmo a ideia de “Frente Anticapitalista” não é óbvia. Existem hoje em dia várias formulações complicadas de “anticapitalismo”. Há organizações que, além de encontrarem “tarefas democráticas e populares” a serem resolvidas na realidade brasileira atual, propõem que há um “transcrescimento das tarefas democráticas e populares em tarefas socialistas”.  Essa ideia parte do trotskismo, outras vezes de algumas leituras estranhas da Teoria Marxista da Dependência, ou de influências da Revolução Cubana.

É, a grosso modo, a ideia de que o capitalismo, ou o capitalismo de determinado país, carrega determinada característica de “declínio” que o “impede” de poder realizar tais tarefas democráticas e populares. Por isso, se as massas se empenharem na sua realização, se verão impulsionadas à ruptura socialista, ao perceberem que é a única maneira de realizá-las. É também a ideia de que essas tarefas, se realizadas pelo proletariado, já serão tarefas anticapitalistas. Remete ao clássico debate entre Lenin e Trotsky, no contexto da revolução de caráter burguês a ser completada na Rússia: Ditadura Democrática do Proletariado e Campesinato x Revolução Permanente. Apesar do que diz uma das teses principais do trotskismo, Lenin não aderiu à Revolução Permanente, e continuou dizendo que tarefas democráticas são tarefas democráticas, mesmo quando realizadas pelo proletariado.

O problema dessas teses, além do fato de encontrarem tais tarefas no Brasil de hoje, é esse: concebem as tarefas democráticas e populares como tarefas socialistas; colocam como objetivo dos comunistas a realização dessas tarefas, já que veem nelas um salto espontâneo das massas para a ruptura; e, na prática, passam mesmo a chamar a realização dessas tarefas de “socialismo”. É uma visão bem famosa agora, por exemplo, por meio de Domenico Losurdo, que considera que o socialismo é a realização das tarefas democráticas nos países periféricos (posto que o capitalismo “normal” nesses países supostamente não poderia aceitar sua realização…) e descarta a superação do estado, do mercado, da família, etc. como “resquícios messiânicos” do marxismo ocidental. Vemos aí uma ligação bem clara entre o trotskismo e aquele “marxismo-leninismo” de teor mais “pragmático”, khruschevista, dengista ou mesmo eurocomunista, historicamente ligado às formulações dos PCs oficiais.

Se uma “Frente Anticapitalista” se realiza com base nessas teses, já não há diferença pra uma Frente Popular. Embarcamos, da mesma forma, em uma proposta unitária em torno de demandas “populares”, pra trilhar um “caminho popular”, rumo a um socialismo igualmente “popular”.

Esses esquemas são frequentemente propostos como se fossem algo muito diferente da Frente Ampla. Fica subentendido que eles se encaixariam na tática de “Frente Única”. Claro, ao se confundir Frente Popular e Frente Ampla, o que se estabelece é: “tudo que não é Frente Ampla, é Frente Única”. Quer dizer, tudo que sai fora da definição mais rebaixada de uma Frente Ampla, com a direita, com o centro, “direcionada pela burguesia”, tá liberado pros comunistas. É, na prática, legitimar a Frente Popular, sob o manto da “Frente Única”.

Isso é particularmente danoso. O que tem que ser percebido é que a Frente Popular foi inicialmente proposta EXATAMENTE como uma forma de Frente Única (essa linguagem continua mesmo hoje em dia: basta lembrar que a Resistência-PSOL nomeia suas propostas de “Frente de Esquerda” com Lula de “Frente Única de Esquerda”). Nos anos 30, Dimitrov considerava que a Frente Popular estava em absoluta continuidade com o que vinha sendo aplicado anteriormente. E apesar de que o 7° Congresso foi um ponto de ruptura inegável, o próprio Anti-Dimitrov menciona que já haviam alguns zigue-zagues na IC em torno dessas táticas – o livro menciona, por exemplo, o caso da tática do “Governo Operário e Camponês”, que saída da lógica da Frente Única, levou a compreensões ambíguas sobre o “governo operário” enquanto “forma original de transição entre a democracia burguesa e a ditadura do proletariado”.

Em textos posteriores ao Anti-Dimitrov, como “O Malogro da Internacional Comunista”, FMR conclui que mesmo a Frente Única, em si, precisa entrar em discussão. É óbvio: se estamos realmente preocupados com o problema do reformismo e do centrismo, não podemos continuar tratando a Frente Única como algo intocável.

Claro, não se trata de abandonar a tática da unidade de ação nas lutas econômicas e parciais da classe trabalhadora, pra no curso dessa luta desmascarar a social-democracia, proporcionar um avanço de consciência, da consciência setorial das diferentes categorias, no rumo da consciência de classe em torno do programa da revolução proletária, etc. O problema é definir a Frente Única de forma vaga, como se fosse algo pronto e acabado esperando aplicação, e não uma política concreta, que surgiu em 1921 na Internacional Comunista e que pode ter interpretações mais direitistas, outras centristas, outras de esquerda, etc. Não por acaso os trotskistas, que têm esse costume de endeusar o período pré-Stalin, costumam tratar a Frente Única como uma fórmula pronta, porque claro, podem encher a boca pra falar da “tática da Frente Única formulada por Lenin e Trotsky no congresso tal da IC”…

A Frente Popular não surge do nada, ela surge exatamente como uma formulação particularmente rebaixada da “Frente Única”, a ponto do 7° Congresso ser um ponto de ruptura. Mas a FORMA de aplicação da Frente Única foi uma discussão desde seu surgimento.

a Frente Única seria de baixo, pela base, ou envolveria acordos e compromissos políticos firmados de cima entre partidos, entre cúpulas? É aceitável, a partir da unidade de ação, as alianças parlamentares? E as alianças governamentais (“Governo Operário e Camponês”)? Temos que buscar conquistar a “maioria” da classe operária? Que tipo de reivindicações podem ser feitas em unidade de ação com a social-democracia, quando, e por quê? Se fizermos “propostas de transição” com o objetivo de desmascarar os líderes social-democratas, essas propostas vão cumprir esse objetivo, ou serão um tiro no pé ao exigir por meio de alianças políticas entre partidos que os social-democratas atendam determinadas demandas, dando a entender que consideramos possível que a social-democracia as atenda?

A Frente Popular foi uma formulação oportunista de Frente Única, um ponto notável de ruptura ao propor a unidade “popular” em torno da “democracia”, seja em nome do antifascismo direcionado ao retorno à democracia burguesa ao invés da revolução proletária, seja pela compreensão de caminho “popular” ao socialismo. O conceito de Frente Ampla, tomado como sinônimo de Frente Popular, ao reduzir a crítica da Frente Popular à crítica das suas formas mais rebaixadas, “direcionadas pela burguesia”, “em aliança com a burguesia nacional”, “etapistas”, etc., acaba legitimando as formas mais “à esquerda” da Frente Popular, usando o mesmo recurso que os próprios frentistas usaram ao propor pela primeira vez a Frente Popular nos anos 30: o recurso à autoridade indiscutível da Frente Única, da ideia de unidade de ação.

Contra isso, temos que estabelecer o entendimento correto da Frente Popular como nascida de formulações oportunistas sobre a “unidade de ação” orientada a nos tirar do isolamento. Não podemos reduzir o frentismo popular ao problema das “frentes com a direita”, mas trazer à discussão o problema das frentes com a social-democracia, o problema do “popular”, e o problema de qual é o limite exato que uma unidade de ação contingente cruza quando passa a borrar a demarcação entre comunismo e social-democracia. Existem aí, como pano de fundo, várias discussões a serem feitas sobre alianças, sobre a definição de proletariado, sobre a história do movimento comunista e sobre a própria definição de “socialismo” que eu não vou conseguir esgotar nessa postagem.

Não é questão de ser sectário e negar a unidade nas lutas, mas de discutir o que se tornou indiscutível. 

Se o objetivo é a unidade de ação pra desmascarar a social-democracia, que ela seja pelas bases, claramente definida, necessariamente temporária e contingente, preservando a construção da luta revolucionária, da independência e demarcação do programa proletário. Todas as manobras e acordos táticos precisam estar subordinados a esse objetivo, sem que subestimemos o perigo da cooptação estatal, institucional e eleitoral, sem se iludir pelo caminho aparentemente “mais fácil” do frentismo popular. O barato sai caro.

Para quem tiver interesse nessa discussão, recomendo os Cadernos de Debate do Ciclo de Palestras e Debates – A Atualidade do Pensamento de Francisco Martins Rodrigues.

Leonardo Ávila

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Cadernos de debate

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Comecei a ler o primeiro volume do Chico sobre o Stalinismo, estou a deliciar-me com tanta e preciosa clarificação, é verdadeiramente notável!
Oxalá que sejam muitos a ler, e não só por uma questão de conhecer a obra do Chico. É imperativo que os comunistas tenham uma posição inequívoca no que concerne ao Stalin, creio que é uma forma de renovar o marxismo.

António Neves

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A importância de ler FMR

A produção teórica do marxismo português sempre foi algo que me interessou. Um país como o nosso, que teve um dos mais interessantes processos revolucionários da Europa, devia ter também uma das mais interessantes produções teóricas, grandes teóricos e obras.

Mas nunca as encontrei! Procurei e procurei, mas tudo se limitava às obras de Álvaro Cunhal. Escusando aqui de expor a minha opinião sobre essas mesmas obras (algumas delas, com desagrado meu, não estão disponíveis em PDF!), eu sabia que o marxismo português teria que ter mais para oferecer. Até que encontrei os escritos de Francisco Martins Rodrigues. Não sei como, e não sei porquê, mas encontrei-os.

E que seja abençoado esse dia! A escrita de FMR é extremamente prazeroza, com uma fluidez excepcional e com uma capacidade de atrair e cativar o leitor. Os tipos de textos que escreve variam, deste pequenos artigos de uma página na revista Política Operária ao seu magnum opus, Anti-Dimitrov. Esta variedade ajuda imenso na leitura da sua obra, pois pode-se facilmente começar pelos pequenos artigos e ir se “escalando” até se chegar ás suas maiores obras. Os pequenos artigos também são bastante importantes por, sendo que não são suficientes para englobarem todo um tema, fazem o leitor pensar e reflectir sobre o que está em questão, abrindo portas a um maior aprofundamento sobre a matéria. Além do mais, a escrita de FMR engloba um multitude de assuntos, desde Estaline, à história do movimento operário, aos problemas do Bloco de Esquerda, à política do PS/PSD, etc., o que significa que será difícil o leitor aborrecer-se ao entrar na página de FMR no Marxists Internet Archive.

E finalmente, existe algo ainda mais interessante sobre os escritos de FMR: a sua actualidade. As suas críticas à AD podem ter 4 décadas, mas continuam a ser precisas no seu ataque ao rotativismo da democracia burguesa. O que ele escreveu sobre o Bloco de Esquerda ou a ascensão do neofascismo pode ter 20 anos, mas continua acutilantemente correto. Embora ele nos tenha deixado há 13 anos, a sua escrita e a sua crítica continuam a ser essenciais a todos os marxistas portugueses, e portanto, recomendo a todos vocês que, quando puderem, em vez de gastarem mais tempo a gritar com reaccionários na Ágora moderna que são as redes sociais, leiam Francisco Martins Rodrigues.

Vasco da Silva